Esta é a última que tenho destes anos. Vendi esta Suzuki depois desta viagem e estive 15 anos sem moto...
1º Dia Anadia - Valladolid
Em Agosto de 1984 (parece que foi ontem), decidi acompanhar um grande amigo de Anadia, em plenas férias do serviço militar de ambos, a Andorra em moto.
Este amigo tem um stand de motos e queria ir a Andorra, para além do passeio, para procurar peças para restaurar uma, já neo-clássica na altura, Suzuki GT 250.
Como ele tinha aptidões mecânicas o plano era simples: Comprava as peças muito mais baratas, montava-as lá e vinha com a moto já restaurada de mecânica.
Fui dormir a casa dele para que saíssemos cedo. Como fomos para os copos nessa noite, acordar cedo, foi mentira. Acordámos às 10horas e ele na 250 e eu na minha saudosa Suzuki ER 125 Azul arrancámos virados a Andorra. A coisa prometia.
Como não havia qualquer IP nem Auto-estradas lá seguimos pelo Luso, Santa Comba, Viseu, Mangualde, Celorico da Beira, Porto da Carne, Guarda, Vilar Formoso e Ciudad Rodrigo onde comemos as duas rações de combate que trouxéramos da "guerra". Estava um calor infernal. Decidimos mais à frente poupar as nossas montadas que, por serem arrefecidas a ar aqueciam bastante e, a partir daí, rolar quando estivesse mais fresco. Parámos para refrescar e descansar em frente a uma “quinta” com uns cedros sombrios e muros altos em pedra. Ali também estava parado um pequeno camião, transformado em auto-caravana com um contentor/escritório (vêem-se agora à porta dos prédios em construção), que não pegava. Solicitados, puxamos pela nossa solidariedade motard e toca a empurrar. Por isso fomos presenteados com uma deliciosa melancia pelo simpático casal espanhol. Enquanto empurrávamos passamos pela porta da “quinta” que afinal se revelou um cemitério pelo que comemos a melancia e ala para Valladolid onde dormiríamos. Longe vá o agoiro.
Chegamos tarde ao parque de campismo pagamos 600 pesetas para dormir umas horas. Montada a tenda, quase meia-noite, ao fundo as mochilas, capacetes em cima. Por volta das cinco da manhã o capacete do meu amigo aterra-lhe em cima da cabeça. Susto do caraças. Acordados, decidimos sair pela fresca.
Segundo dia Valladolid - Lerida
Ainda de noite, lembro-me de termos tido que parar à saída de Peñafiel (vi agora no mapa que seria este o nome, pelo trajecto que fizemos) para limparmos as viseiras de uma nuvem de mosquitos que acabáramos de “atropelar” numa zona de contentores de lixo. O pequeno-almoço foi em Aranda de Duero numa estação de serviço. Ao balcão, o empregado do cafezito aproximou-se e ficou à espera que pedíssemos. Não me apercebi. Zonzo de sono e absorto nos meus pensamentos (em português), olhava atentamente para o escaparate dos bolos quando o cotovelo do meu companheiro de viagem me chamou à terra e eu pedi:
-Uma meia de leite e um bolo “daqueles” por favor, apontando, ao que o empregado disparou com má cara: “Que quiere usted?” Lá tive que reformular o pedido em Portanhol.
Quando o calor já era suportável rolávamos duas horas e parávamos uma para arrefecer as motos. Nas horas de maior calor parávamos. Eu tinha o “rabo” como os bebés quando andam muito tempo com a fralda molhada e os lábios em sangue de tão secos. Chegámos a Zaragoza e um relógio com termómetro, numa rotunda, marcava 19h30m e 37ºC. Estranhamente, a minha Suzuki, afinada para gasolina normal de 85 octanas, (ainda se lembram ou sou eu que já sou muito cota?) não passava dos 100 kms/h com a 95 octanas espanhola, quando aqui dava 115-120 kms/h. O meu companheiro de viagem decidiu então aumentar-lhe o débito do auto-lube para compensar a falta do chumbo que a 95 tinha. Como o “tusto” era pouco nunca entrávamos em auto-estradas. Entretanto procurávamos o melhor caminho para atravessar Zaragoza saindo na nacional, enquanto tudo nos apontava a auto-estrada. Após duas tentativas falhadas parei junto de uma berma bem funda provocada pelas sucessivas camadas de alcatrão sobrepostas e lá, enquanto discutíamos a estratégia para sairmos dali, deixei que a moto se inclinasse para o lado fundo e fui ao chão com a moto. O meu camarada já se estava a passar e eu para desanuviar o clima atirei: Oh pá, deixa coisar o cão que a cadela não é nossa.
Chegamos a Lérida já bem tarde e dormimos numa esteira ao relento nas traseiras de uma estação de serviço para poupar no parque.
Terceiro dia Lérida – Andorra La Vella
Esta parte da viagem é de facto um sonho. As paisagens são deslumbrantes, contrastando com a palha amarela de quase toda a viagem até ali. Chegámos a Andorra por volta da hora do almoço.
Numa farmácia, recomendaram-me um baton factor oito, tal era o estado dos meus lábios. Fomos às compras: dois capacetes um saco de depósito, umas Adidas, a encomenda de uma calculadora científica para outro amigo e os acessórios para a moto do meu amigo. Para grande desilusão dele só havia duas peças para a GT por serem iguais às da 500cc pois o modelo 250cc não fora comercializado em Andorra. Lembro-me que uma das peças era a bicha do velocímetro. Dormimos duas noites em Andorra.
Em Andorra eu andava boquiaberto com as máquinas de duas rodas que em Portugal não se viam. Umas Yamaha´s XJ 1200 acabadas de lançar no mercado, num stand, deixaram-me pasmado. Porque precisaria alguém de tanta cilindrada numa moto?
Outro veículo que me deixou estupefacto foi uma scooter de três rodas (as duas atrás móveis) igual à daquele Securitas da Marina de Vilamoura.
No parque havia algumas motos. Tínhamos um “casal vizinho” francês que viajava numa Goldwing 1000cc dourada, atracada a um side-car BMW preto, do pós-guerra, que parecia a quilha de um barco. Nele viajavam os dois filhitos quase da mesma idade enquanto a mulher ia à pendura. Além capacete tipo jet, eu tinha comprado uma viseira nova para o meu AGV pelo que pus a velha em cima daquilo que me pareceu um saco do lixo encostado a um socalco. Quando o francês chegou da cidade reparei que colava, visivelmente satisfeito, com fita-cola larga a minha velha viseira a um dos capacetes abertos dos miúdos. Afinal o “saco do lixo” revelava-se a despensa do francês, à sombra do morro, que achou fantástico eu ter-me lembrado de lhe oferecer a viseira usada. Achou mais espantoso ainda termos ido numa 125 de tão longe quando descobriu que aquelas matrículas estranhas eram portuguesas. Segundo ele uma aventura comparável a um Paris-Dakar.
Regresso: Andorra – Madrid
Como o meu amigo tinha uns primos a morar em Lisboa, decidimos regressar passando por lá. Saímos de Andorra e volvidos meia dúzia de kms o meu Jet branquinho, novinho em folha, desenvencilhou-se da aranha que o aprisionava e toca às cambalhotas atrás da moto. Diagnóstico, arranhões profundos e um apoio da pala partido. Nunca mais foi o mesmo. Foi um dos primeiros Jet que vi em Portugal.
Chegámos a Madrid ao fim da tarde e aconteceu um episódio que podia ter tido consequências graves. Numa via de quatro faixas com arbustos no separador central mas que tinha cruzamentos com semáforos o meu companheiro de viagem que seguia cerca de 50 metros à minha frente “queimou” um vermelho. Eu achei que já seria arriscar demais passar também e travei para parar. Um camião articulado que me precedia tinha, pelos vistos, ideias de passar o vermelho. Ainda tenho na memória o urro dos pneus do camião atrás de mim. Olhei para o retrovisor e já só vi uma mancha vermelha, a preenchê-lo, era a cabine. Inclinei-me todo para a direita, para a berma, e o camião passou por mim com a galera vazia meia atravessada, envolta em fumo de pneu e com a esquina a meio metro de mim. Acabei por passar o vermelho, amarelo como a cera, com a moto numa mudança demasiado alta, aos soluços e o ajudante do camionista a insultar-me do piorio de fora da janela. Foi por muito pouco.
Decidimos contornar Madrid pela circular exterior. Depois daquele susto, circular a 100 km/h com carros pelos dois lados a mais de 150 km/h era para mim arrepiante. Lá passamos por baixo da bancada do Santiago Barnabéu, onde, nesse dia, jogava o Sporting contra o Real.
Anoiteceu. Depois de uns bocadillos de jámon e a cerveza da praxe achámos que seria bom aproveitar o fresco da noite para viajar menos preocupados com a saúde das nossas montadas. Deixáramos Madrid havia cerca de 30kms quando começou a chover. Mais difícil dormir na Estalagem Estrela ou no Hotel Valeta nestas condições. Parámos numa estação de serviço que, por sorte, tinha um resguardo em chapa para fazer sombra a carros. Pareceu-nos 5 estrelas para pernoitar ao abrigo da chuva. No meio de uns carros, uma moto de cada lado e esteira ao centro. Deitados, começámos a receber uns salpicos na cara. Como não tínhamos nenhuma goteira por cima de nós aquilo parecia estranho. Tratava-se afinal de uma pinga que batia no tejadilho de um dos carros mais acima, passava por cima de outro e ainda sobrava para nós. Toca a mudar de sítio. Já devidamente instalados tivemos ainda que fazer um rego na terra com as botas para desviar uma água que teimava em incomodar-nos. Lembro-me, a meio da noite, de acordar, olhar para a estrada que ficaria a uns 15 - 20m e de estar um Guardia Civil, fora da sua moto, a olhar fixamente para nós. Virei-me para o outro lado. Não nos importunou.
Tomámos o pequeno-almoço nessa estação de serviço e seguimos para Lisboa.
Apesar da chuva no dia anterior o calor era imenso durante o dia. Distraí-me com a gasolina e tive uma pane seca. A minha moto, apesar de só gastar 4 l/100 tinha o depósito pequeno e fazia, no máximo, 180kms. Vimo-nos no meio do nada sem nenhum recipiente com que pudéssemos fazer a trasfega de um depósito para outro do precioso líquido. Depois de muito vasculhar nas redondezas lá arranjámos um copo de iogurte ou coisa do género que deu para desenrascar. Mais à frente, dei conta que o meu depósito de óleo estava practicamente vazio pois já nem aparecia no visor. Não encontrámos na bomba seguinte o Shell Two Stroke, o óleo vermelho recomendado exclusivamente pela Suzuki. Só havia uma marca qualquer espanhola (mineral e de cor verde) e óleo sintético a cerca de 1000 Pts o litro. Dada a magreza do meu Pré militar (3.000$00/mês) lá teve a Suzuki que beber verde.
Chegámos à fronteira do meio para o fim da tarde. Lembro-vos que ainda havia fronteiras policiadas, que era preciso passaporte, tudo pagava direitos, impostos, etc. Conscientes destes excessos de zelo eu trazia as sapatilhas novas calçadas, o capacete novo na cabeça e a máquina de calcular que tinha sido bem “marralhada” em Andorra entre o depósito e o suporte do saco, num enchimento em espuma para suprir a falta de tamanho do depósito.
Foi uma tourada. O guarda fronteiriço deve ter-nos achado muito suspeitos. Dois gajos novos, de moto, a barba por fazer, os cabelos a precisarem de mudar o óleo e as calças de ganga com seis dias de uso intensivo também não abonavam em nada a nosso favor. Começaram as perguntas:
Têm alguma coisa a declarar? Não tínhamos. Os capacetes suplentes eram para as gajas? Ora abram lá as essas mochilas. Tirou tudo o que lá havia e que não passava de roupa suja a tresandar. Como não encontrou nenhuma substância ilegal, que parecia apostar que nós trazíamos, deixou-nos seguir.
Chegámos a Lisboa por volta da meia-noite e os primos dele ainda não tinham chegado. Como o meu amigo dormia lá muitas vezes por estar lá na marinha, tinha chave. Abrimos o sofá cama da sala e está a xonar. Eu estava tão esgotado que os primos chegaram às 3 da manhã e eu ainda tinha a mão no interruptor do candeeiro que desligara três horas antes.
Amigos, esta foi de facto uma viagem inesquecível e daquelas vivências que darão muito gozo contar aos netos mesmo correndo o risco de dar maus exemplos.
A esta distância algumas das circunstâncias e peripécias desta viagem podem parecer-nos inadmissíveis como: a ausência de planeamento, de equipamento adequado, de cuidado, de dinheiro, os insuficientes cuidados de higiene etc. Mas tudo isto tem que ser explicado à luz do seguinte contexto: tínhamos 22 anos de idade, eu ex escuteiro e com muitas noites ao relento, ambos no cumprimento do serviço militar onde eram rainhas as manobras e semanas de campo e nove anos após a revolução de Abril numa época em que, Portugal não vivia grandes luxos. Espero tenham conseguido viver um pouco esta nossa viagem...
Até sempre
1º Dia Anadia - Valladolid
Em Agosto de 1984 (parece que foi ontem), decidi acompanhar um grande amigo de Anadia, em plenas férias do serviço militar de ambos, a Andorra em moto.
Este amigo tem um stand de motos e queria ir a Andorra, para além do passeio, para procurar peças para restaurar uma, já neo-clássica na altura, Suzuki GT 250.
Como ele tinha aptidões mecânicas o plano era simples: Comprava as peças muito mais baratas, montava-as lá e vinha com a moto já restaurada de mecânica.
Fui dormir a casa dele para que saíssemos cedo. Como fomos para os copos nessa noite, acordar cedo, foi mentira. Acordámos às 10horas e ele na 250 e eu na minha saudosa Suzuki ER 125 Azul arrancámos virados a Andorra. A coisa prometia.
Como não havia qualquer IP nem Auto-estradas lá seguimos pelo Luso, Santa Comba, Viseu, Mangualde, Celorico da Beira, Porto da Carne, Guarda, Vilar Formoso e Ciudad Rodrigo onde comemos as duas rações de combate que trouxéramos da "guerra". Estava um calor infernal. Decidimos mais à frente poupar as nossas montadas que, por serem arrefecidas a ar aqueciam bastante e, a partir daí, rolar quando estivesse mais fresco. Parámos para refrescar e descansar em frente a uma “quinta” com uns cedros sombrios e muros altos em pedra. Ali também estava parado um pequeno camião, transformado em auto-caravana com um contentor/escritório (vêem-se agora à porta dos prédios em construção), que não pegava. Solicitados, puxamos pela nossa solidariedade motard e toca a empurrar. Por isso fomos presenteados com uma deliciosa melancia pelo simpático casal espanhol. Enquanto empurrávamos passamos pela porta da “quinta” que afinal se revelou um cemitério pelo que comemos a melancia e ala para Valladolid onde dormiríamos. Longe vá o agoiro.
Chegamos tarde ao parque de campismo pagamos 600 pesetas para dormir umas horas. Montada a tenda, quase meia-noite, ao fundo as mochilas, capacetes em cima. Por volta das cinco da manhã o capacete do meu amigo aterra-lhe em cima da cabeça. Susto do caraças. Acordados, decidimos sair pela fresca.
Segundo dia Valladolid - Lerida
Ainda de noite, lembro-me de termos tido que parar à saída de Peñafiel (vi agora no mapa que seria este o nome, pelo trajecto que fizemos) para limparmos as viseiras de uma nuvem de mosquitos que acabáramos de “atropelar” numa zona de contentores de lixo. O pequeno-almoço foi em Aranda de Duero numa estação de serviço. Ao balcão, o empregado do cafezito aproximou-se e ficou à espera que pedíssemos. Não me apercebi. Zonzo de sono e absorto nos meus pensamentos (em português), olhava atentamente para o escaparate dos bolos quando o cotovelo do meu companheiro de viagem me chamou à terra e eu pedi:
-Uma meia de leite e um bolo “daqueles” por favor, apontando, ao que o empregado disparou com má cara: “Que quiere usted?” Lá tive que reformular o pedido em Portanhol.
Quando o calor já era suportável rolávamos duas horas e parávamos uma para arrefecer as motos. Nas horas de maior calor parávamos. Eu tinha o “rabo” como os bebés quando andam muito tempo com a fralda molhada e os lábios em sangue de tão secos. Chegámos a Zaragoza e um relógio com termómetro, numa rotunda, marcava 19h30m e 37ºC. Estranhamente, a minha Suzuki, afinada para gasolina normal de 85 octanas, (ainda se lembram ou sou eu que já sou muito cota?) não passava dos 100 kms/h com a 95 octanas espanhola, quando aqui dava 115-120 kms/h. O meu companheiro de viagem decidiu então aumentar-lhe o débito do auto-lube para compensar a falta do chumbo que a 95 tinha. Como o “tusto” era pouco nunca entrávamos em auto-estradas. Entretanto procurávamos o melhor caminho para atravessar Zaragoza saindo na nacional, enquanto tudo nos apontava a auto-estrada. Após duas tentativas falhadas parei junto de uma berma bem funda provocada pelas sucessivas camadas de alcatrão sobrepostas e lá, enquanto discutíamos a estratégia para sairmos dali, deixei que a moto se inclinasse para o lado fundo e fui ao chão com a moto. O meu camarada já se estava a passar e eu para desanuviar o clima atirei: Oh pá, deixa coisar o cão que a cadela não é nossa.
Chegamos a Lérida já bem tarde e dormimos numa esteira ao relento nas traseiras de uma estação de serviço para poupar no parque.
Terceiro dia Lérida – Andorra La Vella
Esta parte da viagem é de facto um sonho. As paisagens são deslumbrantes, contrastando com a palha amarela de quase toda a viagem até ali. Chegámos a Andorra por volta da hora do almoço.
Numa farmácia, recomendaram-me um baton factor oito, tal era o estado dos meus lábios. Fomos às compras: dois capacetes um saco de depósito, umas Adidas, a encomenda de uma calculadora científica para outro amigo e os acessórios para a moto do meu amigo. Para grande desilusão dele só havia duas peças para a GT por serem iguais às da 500cc pois o modelo 250cc não fora comercializado em Andorra. Lembro-me que uma das peças era a bicha do velocímetro. Dormimos duas noites em Andorra.
Em Andorra eu andava boquiaberto com as máquinas de duas rodas que em Portugal não se viam. Umas Yamaha´s XJ 1200 acabadas de lançar no mercado, num stand, deixaram-me pasmado. Porque precisaria alguém de tanta cilindrada numa moto?
Outro veículo que me deixou estupefacto foi uma scooter de três rodas (as duas atrás móveis) igual à daquele Securitas da Marina de Vilamoura.
No parque havia algumas motos. Tínhamos um “casal vizinho” francês que viajava numa Goldwing 1000cc dourada, atracada a um side-car BMW preto, do pós-guerra, que parecia a quilha de um barco. Nele viajavam os dois filhitos quase da mesma idade enquanto a mulher ia à pendura. Além capacete tipo jet, eu tinha comprado uma viseira nova para o meu AGV pelo que pus a velha em cima daquilo que me pareceu um saco do lixo encostado a um socalco. Quando o francês chegou da cidade reparei que colava, visivelmente satisfeito, com fita-cola larga a minha velha viseira a um dos capacetes abertos dos miúdos. Afinal o “saco do lixo” revelava-se a despensa do francês, à sombra do morro, que achou fantástico eu ter-me lembrado de lhe oferecer a viseira usada. Achou mais espantoso ainda termos ido numa 125 de tão longe quando descobriu que aquelas matrículas estranhas eram portuguesas. Segundo ele uma aventura comparável a um Paris-Dakar.
Regresso: Andorra – Madrid
Como o meu amigo tinha uns primos a morar em Lisboa, decidimos regressar passando por lá. Saímos de Andorra e volvidos meia dúzia de kms o meu Jet branquinho, novinho em folha, desenvencilhou-se da aranha que o aprisionava e toca às cambalhotas atrás da moto. Diagnóstico, arranhões profundos e um apoio da pala partido. Nunca mais foi o mesmo. Foi um dos primeiros Jet que vi em Portugal.
Chegámos a Madrid ao fim da tarde e aconteceu um episódio que podia ter tido consequências graves. Numa via de quatro faixas com arbustos no separador central mas que tinha cruzamentos com semáforos o meu companheiro de viagem que seguia cerca de 50 metros à minha frente “queimou” um vermelho. Eu achei que já seria arriscar demais passar também e travei para parar. Um camião articulado que me precedia tinha, pelos vistos, ideias de passar o vermelho. Ainda tenho na memória o urro dos pneus do camião atrás de mim. Olhei para o retrovisor e já só vi uma mancha vermelha, a preenchê-lo, era a cabine. Inclinei-me todo para a direita, para a berma, e o camião passou por mim com a galera vazia meia atravessada, envolta em fumo de pneu e com a esquina a meio metro de mim. Acabei por passar o vermelho, amarelo como a cera, com a moto numa mudança demasiado alta, aos soluços e o ajudante do camionista a insultar-me do piorio de fora da janela. Foi por muito pouco.
Decidimos contornar Madrid pela circular exterior. Depois daquele susto, circular a 100 km/h com carros pelos dois lados a mais de 150 km/h era para mim arrepiante. Lá passamos por baixo da bancada do Santiago Barnabéu, onde, nesse dia, jogava o Sporting contra o Real.
Anoiteceu. Depois de uns bocadillos de jámon e a cerveza da praxe achámos que seria bom aproveitar o fresco da noite para viajar menos preocupados com a saúde das nossas montadas. Deixáramos Madrid havia cerca de 30kms quando começou a chover. Mais difícil dormir na Estalagem Estrela ou no Hotel Valeta nestas condições. Parámos numa estação de serviço que, por sorte, tinha um resguardo em chapa para fazer sombra a carros. Pareceu-nos 5 estrelas para pernoitar ao abrigo da chuva. No meio de uns carros, uma moto de cada lado e esteira ao centro. Deitados, começámos a receber uns salpicos na cara. Como não tínhamos nenhuma goteira por cima de nós aquilo parecia estranho. Tratava-se afinal de uma pinga que batia no tejadilho de um dos carros mais acima, passava por cima de outro e ainda sobrava para nós. Toca a mudar de sítio. Já devidamente instalados tivemos ainda que fazer um rego na terra com as botas para desviar uma água que teimava em incomodar-nos. Lembro-me, a meio da noite, de acordar, olhar para a estrada que ficaria a uns 15 - 20m e de estar um Guardia Civil, fora da sua moto, a olhar fixamente para nós. Virei-me para o outro lado. Não nos importunou.
Tomámos o pequeno-almoço nessa estação de serviço e seguimos para Lisboa.
Apesar da chuva no dia anterior o calor era imenso durante o dia. Distraí-me com a gasolina e tive uma pane seca. A minha moto, apesar de só gastar 4 l/100 tinha o depósito pequeno e fazia, no máximo, 180kms. Vimo-nos no meio do nada sem nenhum recipiente com que pudéssemos fazer a trasfega de um depósito para outro do precioso líquido. Depois de muito vasculhar nas redondezas lá arranjámos um copo de iogurte ou coisa do género que deu para desenrascar. Mais à frente, dei conta que o meu depósito de óleo estava practicamente vazio pois já nem aparecia no visor. Não encontrámos na bomba seguinte o Shell Two Stroke, o óleo vermelho recomendado exclusivamente pela Suzuki. Só havia uma marca qualquer espanhola (mineral e de cor verde) e óleo sintético a cerca de 1000 Pts o litro. Dada a magreza do meu Pré militar (3.000$00/mês) lá teve a Suzuki que beber verde.
Chegámos à fronteira do meio para o fim da tarde. Lembro-vos que ainda havia fronteiras policiadas, que era preciso passaporte, tudo pagava direitos, impostos, etc. Conscientes destes excessos de zelo eu trazia as sapatilhas novas calçadas, o capacete novo na cabeça e a máquina de calcular que tinha sido bem “marralhada” em Andorra entre o depósito e o suporte do saco, num enchimento em espuma para suprir a falta de tamanho do depósito.
Foi uma tourada. O guarda fronteiriço deve ter-nos achado muito suspeitos. Dois gajos novos, de moto, a barba por fazer, os cabelos a precisarem de mudar o óleo e as calças de ganga com seis dias de uso intensivo também não abonavam em nada a nosso favor. Começaram as perguntas:
Têm alguma coisa a declarar? Não tínhamos. Os capacetes suplentes eram para as gajas? Ora abram lá as essas mochilas. Tirou tudo o que lá havia e que não passava de roupa suja a tresandar. Como não encontrou nenhuma substância ilegal, que parecia apostar que nós trazíamos, deixou-nos seguir.
Chegámos a Lisboa por volta da meia-noite e os primos dele ainda não tinham chegado. Como o meu amigo dormia lá muitas vezes por estar lá na marinha, tinha chave. Abrimos o sofá cama da sala e está a xonar. Eu estava tão esgotado que os primos chegaram às 3 da manhã e eu ainda tinha a mão no interruptor do candeeiro que desligara três horas antes.
Amigos, esta foi de facto uma viagem inesquecível e daquelas vivências que darão muito gozo contar aos netos mesmo correndo o risco de dar maus exemplos.
A esta distância algumas das circunstâncias e peripécias desta viagem podem parecer-nos inadmissíveis como: a ausência de planeamento, de equipamento adequado, de cuidado, de dinheiro, os insuficientes cuidados de higiene etc. Mas tudo isto tem que ser explicado à luz do seguinte contexto: tínhamos 22 anos de idade, eu ex escuteiro e com muitas noites ao relento, ambos no cumprimento do serviço militar onde eram rainhas as manobras e semanas de campo e nove anos após a revolução de Abril numa época em que, Portugal não vivia grandes luxos. Espero tenham conseguido viver um pouco esta nossa viagem...
Até sempre