Com o Ramadão a acertar em cheio no mundo árabe, em todo o quente mês de Agosto, uma ida para Sul não se perspectivava convidativa. Convidativa é sempre a ideia de passar alguns dias de férias do quente mês de Agosto a alguma altitude. Ir para a montanha com calor é sempre fresquinho garantido. Ir para a montanha de moto é também sinónimo de muitas alegrias.
Já há alguns anos que a ideia estava mergulhada em banho-maria. Em 20 anos de viagens de moto pela Europa, atravessei muitas vezes essa barreira física que separa os ibéricos do resto da Europa, a maior parte das vezes junto a um dos dois mares: atlântico ou mediterrâneo. É mesmo junto a estes dois mares que a largura dos Pirinéus é mínima e se ultrapassa com mais rapidez e facilidade. Mas esta cadeia montanhosa é também rasgada por alguns vales, orientados na direcção norte-sul, alguns com túneis que muito foram melhorando ao longo dos anos. Há vinte anos, percorrer alguns destes túneis tinha o sabor de grandes aventuras!
Os Pirinéus têm assim sido uma barreira física considerável entre a península ibérica e o resto da Europa, fazendo com que historicamente tenha havido, durante muito tempo, contactos importantes dos habitantes desta península com o continente africano. A origem destes montes - mais “velhos” do que os Alpes, que tanto gostamos de percorrer de moto – remonta a algumas dezenas de milhões de anos atrás na história da Terra. Há 100 milhões de anos, a Ibéria era um mini-continente autónomo, separado da Eurásia (onde estavam a maioria dos países europeus actuais), situado a oeste da região onde se localliza actualmente a França. Por pressão do Golfo da Biscaia, há 80 milhões de anos, e “entalado pela placa africana”, que não o deixava movimentar-se para Sul, este pequeno continente ibérico começou a entrar em choque com a placa eurasiática, dando origem às montanhas que hoje conhecemos como os Pirinéus, num processo que terminou há 20 milhões de anos. Os Pirinéus de hoje são uma versão “tratada” pela erosão, dos montes então formados pelo choque destas duas placas.
Antes que se assustem com uma possível “coça” de geologia , vamos ao propósito deste passeio. Depois de tantos anos utilizando os Pirinéus como porta rápida de entrada e saída da Europa central, uma ideia germinava na minha cabeça já há alguns anos: percorrer estas montanhas de uma ponta à outra, numa direcção transversal à “habitual”, entre os dois mares: atlântico e mediterrâneo. E estabeleci que faria a travessia no sentido Atlântico -> Mediterrâneo e pelo lado espanhol, com pequenas incursões em território frencês, se necessário. Estabeleci também que iria fazer isso pelos caminhos mais rudimentares que fosse possível.
Não sabia ainda o que “rudimentar” queria dizer, mas a minha ideia era fazer o essencial da travessia fugindo às rotas mais comuns e aos circuitos turísticos habituais, se possível em parte fora de estrada, indo o máximo ao encontro da cultura tradicional dos povos pirenaicos, sobretudo o do país basco e o povo catalão, curiosamente os povos ibéricos (ou com uma parte ibérica) que mais têm reclamado independência e que têm línguas e dialectos próprios (Andorra constituiu-se como um principado).
Sobretudo na parte dos Pirinéus Centrais, uma estrada corre grosseiramente paralela à fronteira franco-espanhola, chamada (pelos espanhóis) “eixo pirenaico”. É a N260, a rota óbvia. Eu queria fugir dessa rota.
No entanto levantavam-se algumas outras questões:
• Iria fazer a viagem a solo, como tem sido costume nos últimos anos, na pequena vadiagem tradicional de Verão. Como qualquer “offroadista” sabe, mesmo os mais experimentados e habilidosos, “nunca se vai sozinho para o monte”, e muito menos longe de casa. Ora eu não sou nem experimentado nem habilidoso. No entanto gostava de fazer algum off road, sem perder de vista esta máxima.
• Na busca prévia de ideias para uma rota, deparei com vários relatos de restrições à circulação fora de estrada em algumas zonas dos Pirinéus. Não sabia o que iria encontrar no terreno, de facto.
• Perguntava-me até que ponto não gostaria, já no terreno, de dar algumas facadinhas no estilo vadio da viagem e misturar-me com os turistas de vez em quando. Li sobre histórias de grutas de bruxas (abertas ao turismo) no país basco, fui espeleólogo e tinha a curiosidade de lá ir espreitar. E quem sabe de experimentar outras actividades turísticas que me aparecessem pelo caminho.
Não tinham que ser umas férias suadas, nem me iria impôr um percurso ou actividades rígidas. Como diz Jamie Pearson, “Never forget that it’s your vacation and there’s no wrong way to do it. There’s no such thing as a must-see attraction. It you travel all the way to Paris and order room service, that’s your business. Do what feels fun to you.”
A cadeia montanhosa pirenaica tem um pouco menos de 500 quilómetros de extensão e os percursos habituais pelas estradas asfaltadas indicam como típicas, distâncias de 800 a 900 quilómetros entre as duas costas, pelas comunidades autónomas espanholas do País Basco, Navarra, Aragão e Catalunha.
Na atribulação que tento sempre evitar mas que se foi tornando habitual, dos dias anteriores à partida, acabei por encontrar e optar por tomar como base do percurso, um trajecto GPS que encontrei na comunidade Wikiloc, aqui: http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=1131388 . Descarreguei todo o percurso, que foi percorrido no sentido inverso do que eu pretendia fazer, gravei numa Pen-Drive e esqueci-me do assunto. Talvez pela impreparação e por ter visto outros percursos feitos por motos, não reparei na altura que este em concreto tinha sido feito em bicicleta, em 16 dias, e estava descrito como difícil. Talvez não acreditem, mas só agora, ao redigir o relato, me apercebo disto. Muito do que encontrei pelo caminho, só agora se torna claro!
Reservei 15 dias para a vadiagem. Dela resultou uma estranha mistura de percurso por estradas muito secundárias, rurais, florestais, algumas incursões todo-o-terreno e muitas variantes ao percurso-base, basicamente para ver alguns dos vales que correm na direcção Sul-Norte e se dirigem para França, e também para actividades mais “à turista”.
Nesta viagem a minha companheira foi o (actualmente) meu "motão": uma trail Suzuki 350, com a provecta idade de 20 anos, equipada com duas malas laterais oferecidas por um amigo: o António Caldeira. Apesar do tratamento nem sempre meigo que lhe dei, portou-se de forma exemplar e o único percalço foi a perda de um dos dois parafusos que prendem a mandíbula do travão da frente. Que não teve qualquer consequência: fez mais de 1500 kms com um parafuso a menos. :lingua:
Alguns números rápidos (mais, ficam para mais tarde no relato):
• Viagem de ida e volta a partir de Bragança: 3750 Kms
• 3 dormidas em camping selvagem, 1 em albergue (dormitório), 1 em bungalow em camping, 1 em hotel e as restantes em camping oficial.