Relato da viagem
Quando se vive no nordeste transmontano, nada há de mais natural, quando se pensa em viagens, do que olhar também para norte e para leste. Apenas a 20 kms de Bragança, em qualquer dessas direcções, fala-se o espanhol e encontram-se algumas das mais bonitas e menos conhecidas regiões da península ibérica.
Não sei dizer com precisão quando me surgiu a ideia de fazer uma viagem mais longa na pequena scooter de 4 cv que havia comprado em Abril deste ano para as minhas deslocações diárias na cidade. Não terá sido muito antes do dia da partida, 29 de Julho, sem grandes preparativos que não fosse alguma preparação mental para o ritmo do passeio que se seguiria.
Vários amigos me perguntaram porque, podendo eu usar outros meios de transporte mais confortáveis, me deslocava às Asturias numa das mais minúsculas scooters a quatro tempos existentes no mercado, com apenas 4 cv. Todos temos motivações diferentes para viajar. Para mim, o prazer de viajar não vem do número de estrelas do hotel onde durmo, nem do conforto do veículo em que me desloco, mas das doses certas de aventura, paisagens e natureza, e, principalmente, dos meus companheiros de viagem e/ou dos encontros com pessoas interessantes que se fazem pelo caminho. Assim se resume uma das lições das várias viagens que tenho feito ao longo de alguns anos.
Há muitas razões para escolher uma pequena scooter que não passa dos 50 km/h para viajar. Em separado falo de algumas delas, mas as principais são muito simples. Em primeiro lugar, neste veículo o passeio torna-se uma pequena aventura e depois, a velocidade “de bicicleta” simplifica vários aspectos e gestos, permitindo saborear melhor os lugares por onde passamos. Este último aspecto pode parecer retórico mas é uma realidade prática inegável. De moto, pelo ar fresco ou quente, seco ou húmido, que nos bate na cara, pelos cheiros, enfim por tudo o que nos espevita os sentidos. De scooter, porque há mais tempo para tudo isto, porque queremos parar mais vezes pelo caminho, saborear melhor os estímulos aos sentidos e abrir o contacto casual com a natureza e com as pessoas.
A partida de Bragança aconteceu num Domingo cerca das 6 da manhã, após uma noite de sono curta e mal dormida, tudo sem grandes preparativos. No porta-bagagens dianteiro, seguia a minha casa: uma pequena tenda igloo, uma colchonette de ar, o saco cama e o tripé para a máquina fotográfica e de filmar. No porta-bagagens traseiro, um dry bag com a minha roupa e sob o assento alguns mapas e guias, acessórios de fotografia e vídeo, fato de chuva. Dependurado no guiador coloquei um saco dos que se usam nas bicicletas, para pequenos objectos.
A pequena Honda azul viu o seu depósito atestado com menos de três litros de gasolina e rumou em direcção ao Norte, começava o dia a nascer. Decidi submeter a azulinha a um primeiro teste e em vez de contornar, como habitual, o Parque Natural da Sanabria por Este ou Oeste, cortei-o a meio pelas estradas asfaltadas de mais alta montanha que o percorrem, passando por duas vezes muito perto dos dois mil metros de altitude, por Escuredo e La Baña, nem sempre por estradas marcadas nos mapas. Fazia muito frio logo de manhã e o calor só se começaria a notar durante a descida da face Norte da Sanabria. A meio da manhã, uma curta soneca para compensar a noite mal dormida. A subida até à projectada pista de Ski de Peña Trevinca (que tem um pequeno albergue no cimo) impressionou-me pela grandiosidade da paisagem e solidão (mais intensas do que na nossa Serra da Estrela) e pelo trabalho que significavam para a tão carregada Honda Today, as longas e inclinadas subidas. Confesso que ao olhar as estradas que serpenteavam até ao alto dos passes de montanha, me passou pela cabeça uma réstea de dúvida nas capacidades da Today para as vencer, mas passada esta prova passei a ter uma confiança quase ilimitada. As subidas mais dramáticas foram feitas a fundo, a 12 km/h, velocidades tão baixas que o equilíbrio em duas rodas começa a ser crítico.
Já perto do sopé, um pouco antes da pitoresca vila de “O Barco”, a primeira paragem para gasolina, a contar para a média. O posto, pouco frequentado, estava apenas semi-operacional e a bomba de super 95 não funcionava, só a de 98. Mas a “chica” que estava de serviço, ao saber-me português naquela pulga de duas rodas que encheu o depósito com 3,2 litros, tratou logo de falar a minha linguagem: “ah, si, la aventura total, verdad?”. Pois verdade, e mais fácil de explicar (tão fácil que nem foi preciso abrir a boca) do que aos meus amigos portugueses que teriam dificuldade em dispensar o conforto de um automóvel.
As paisagens das faces Norte e Sul da zona montanhosa onde se situa o Parque Natural da Sanabria são de um contraste brutal. A face Sul, verde, preservada e turística, tem o Lago da Sanabria, o maior lago de origem glaciar de toda a Europa, como centro das atracções. Na face Norte, pedreiras a perder de vista, exploradas por uma firma cujo nome – Pizarras del Cármen - aparece em tudo o que há por estas bandas.
Rumei de seguida ao primeiro grande objectivo da viagem, os Ancares, uma zona de reserva natural, lindíssima e muito especial pelo seu valor ecológico, paisagístico e etnográfico, com uma parte no extremo ocidental de Castela-Léon e outra no extremo sudoeste da Galiza. É um lugar remoto, com algumas estradas de terra batida, com aldeias fracamente populadas, algumas sem luz e isoladas com a neve no Inverno, cabanas pré-históricas, bosques autóctones, picos de muito difícil acesso e uma variedade riquíssima de fauna e flora.
Os Ancares leoneses e os homólogos galegos têm características um pouco diferentes. A parte galega é um pouco mais pitoresca do ponto de vista das construções nas aldeias, das quais destaco as chamadas pallozas, mas a natureza é mais agreste e grandiosa do lado leonês. As pallozas são construções pré-romanas habitadas, até um passado muito recente (pouco mais de uma década) por homens e animais. O ponto de partida dos Ancares Galegos é Becerrá (que não cheguei a visitar), enquanto que a porta de entrada dos Ancares Leoneses, mais a Sul, pode ser a belíssima povoação de Villafranca del Bierzo – a que eu utilizei - que, com o seu património histórico-religioso, é um dos pontos de passagem do Caminho de Santiago. Quando lá passei, muitos peregrinos, a pé ou de bicicleta, espalhavam-se pela praça central. Aliás, os encontros com peregrinos que se deslocavam para Santiago de Compostela, foram uma constante durante toda a viagem.
Fiz várias incursões, ainda no Domingo, nos vales dos Ancares Leoneses, algumas dos quais por estradas não asfaltadas, pouco próprias para uma scooter com rodas tão pequenas, mas que esta ainda assim levou com muito “boa vontade”. A paisagens e sensações que nos proporcionam estes vales valem todos os quilómetros nestas estradas que têm que ser percorridas nos dois sentidos, pois não existe passagem por estrada para o lado galego (com uma excepção).
Tencionava acampar livremente, mas para além de não ter sido tão fácil como pensava encontrar um local apropriado para pernoitar (escarpas, margens curtas, vegetação cerrada, etc), encontrei no final do dia um camping com características próximas do meu ideal de local de acampar, sem TV, com pouca gente e sem ruídos que não fossem os da natureza e o conforto mínimo da “civilização” como é o caso da água quente para o duche. Foi na aldeia de Burbia, onde para jantar me deliciei com um caldo burbiano (que mais tarde percebi ser idêntico ao caldo galego) e um frango com alho que me souberam pela vida. O tempo estava tão agradável que, depois do passeio nocturno pela aldeia, ainda fiz uma tentativa para dormir ao relento, sem tenda, coisa de que gosto muito mas que raramente faço porque os mosquitos resolvem sempre comigo fazer um banquete! Recolhido à tenda, após o início do festim destes insectos voadores, dormi um sono tão repousante que já o sol ia alto quando me decidi a fazer-me à estrada de novo. Na partida, o recepcionista viu, com um sorriso, o veículo em que me deslocava e disse-me: “No te cobro por la moto”. “Gracias!”, retorqui. Viajar numa moto que “não é a sério” tem as suas vantagens.
A exploração dos Ancares Leoneses continuou no dia seguinte por mais alguns vales, e finalmente através da única estrada asfaltada que permite a passagem directa de veículos para o lado galego. É a estrada que segue por Vega de Espinareda, Candin, Pereda de Ancares, através de percursos de alta montanha que a Today venceu muito lentamente mas com confiança. Junto ao passe de montanha de Puerto de Ancares, a 1648 metros, as subidas alcançam uma inclinação de 16%, segundo a sinalização no local. A vista do cimo é magnífica. Durante a descida, sucedem-se as aldeias pitorescas, algumas quase que suspensas nas encostas. Parei para um almoço excelente e muito em conta em Piornedo, a minha aldeia favorita, no único hotel da região. Aliás, a hotelaria nesta zona é muito escassa e a oferta é rústica, mas estes são os locais onde me sinto melhor. À porta do hotel, uma breve conversa com um habitante local que não acreditava que pudesse estar a falar com um português montado numa moto de 4 cavalos. A paragem seguinte foi em Navia de Suarna, onde a bonita ponte medieval e a bucólica zona do rio dominam. Navia de Suarna marca o final do território dos Ancares. Enquanto seguia viagem no meu ritmo prazenteiro, pensava em como esta zona merece uma viagem demorada, por exemplo no Inverno, quando está coberta de neve.
Continuei até Fonsagrada por uma estrada secundária estreita onde a Today acompanhava os automóveis com facilidade (!) em quase todo o lado. Aqui fui a um supermercado à antiga, onde tanto se podem comprar bolachas para os meninos como soutiens para as senhoras. Comprei o meu lanche e jantar, bem como uma nova toalha, já que a minha, que ia atrás, a secar, mal presa à bagagem, havia voado durante os saltos na estrada. Continuei para Norte, pelo Alto de Acebo, resolvido a chegar à costa ainda durante o dia, pela estrada que acompanha o curso do rio Navia, em altitude. As vistas desta estrada para o vale e para os montes circundantes são fabulosas. A proximidade do oceano anuncia-se através do contacto com o ar, até então muito quente, que se torna bem mais fresco e húmido com a chegada à costa. Ao cair da noite estava nas imediações da cidade de Navia. Como não havia nenhum camping interessante à distância de uma viagem à luz do dia, decidi fazer a minha primeira noite de campismo livre num local sossegado e seguro muito perto da cidade… debaixo da magnífica ponte sobre o rio Navia.
A descoberta de um local para acampar requer mais experiência do que se pensa, pois é preciso que o sítio reúna um conjunto de condições: ser seguro, ser sossegado, plano, alcançável por uma moto normal e deve ficar-se oculto para quem passa pelas estradas ou pelos caminhos. Penso que o campismo livre é proibido na maior parte da Europa, mas como por vezes é indicada expressamente a proibição de acampar nas zonas turísticas, suponho que ele é genericamente tolerado ou pelo menos não perseguido fora das zonas onde circulam muitos turistas.
Deitei-me muito cedo, depois de uma sessão de fotos, mas acordei mais tarde com a música em altos berros de um carro que se aproximou, mas nunca se chegou a aperceber da minha presença (este é o sinal de um local bem escolhido!). Abalou já de manhã e eu parti, também cedo, do meu acampamento remoto à beira da civilização.
A manhã de terça-feira foi dedicada a explorar a costa asturiana, num curto troço entre Navia e Cudillero, zona que já conhecia parcialmente. Puerto de Vega e Luarca são duas pitorescas povoações de pescadores, que proporcionam fotos excelentes. Muito perto, uma pequena reserva natural costeira, a Reserva Natural de Barayo, com uma praia muito sossegada, acessível a pé.
Na parte da tarde atingi finalmente o “objectivo oficial” da minha viagem, a Playa del Silencio ou Gaviero, praia de calhaus de acesso muito discreto a partir da estrada costeira. A praia, que atrai mais viajantes do que turistas, é um espantoso capricho da natureza. Uma sucessão de ilhotas em frente a uma formação rochosa, escarpada, em forma de concha, caprichosamente esculpida, banhada por límpidas águas. Teria que aqui voltar, mas a prioridade agora era tomar um bom banho, pelo que decidi assentar arraiais num camping, relativamente cedo. Escolhi o parque de campismo de San Pedro de la Ribera, à beira de uma praia de areias finas, local impecavelmente equipado para famílias com caravanas, onde, no bar, travei conhecimento com uma austríaca do Tirol que vem trabalhar todos os Verões para Espanha e aspira a ir trabalhar para a América Latina.
O resto do dia de terça-feira foi aproveitado para percorrer toda a costa entre o camping e Cudillero, já que a metereologia anunciava chuva para o dia seguinte. O passeio levou-me ao Cabo Vívio, a partir de onde se disfruta de uma magnífica paisagem e a Cudillero, a mais pitoresca povoação de pescadores de todo o passeio, com ruas estreitíssimas, trânsito caótico e polícias correspondentemente activos nas multas de estacionamento. Cudillero está tomada pelo turismo, ainda que em níveis bem menos elevados que outros locais mais quentes das costas espanholas. A praça central está cheia de esplanadas onde se podem provar os pescados a preços “para turista” (caros para gente do norte, normais para lisboetas). Tive aqui a minha lição acerca daquilo que o turismo de massas pode fazer a uma povoação de gente certamente trabalhadora e habituada à vida difícil do mar. Depois de escolher o restaurante para provar o “pescado” fresco, e sem deixar os meus pertences na mesa, fui ao WC, onde à saída me esperava um tipo - certamente o proprietário - que me vociferou que “aquilo era um restaurante e não uma casa de banho pública”. Sorri e perguntei-lhe no meu melhor espanhol como sabia que eu não ia jantar. A berraria continuou e eu sorri-lhe e disse-lhe calmamente que acabava de perder um cliente.
Última edição por TodayAdventure em Qua 03 Set 2008, 00:19, editado 3 vez(es)